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sábado, 9 de maio de 2015

Valores civilizatórios afro-brasileiros e Educação Infantil: uma contribuição afro-brasileira Azoilda Loretto da Trindade







Valores civilizatórios afro-brasileiros e Educação Infantil: uma contribuição afro-brasileira Azoilda Loretto da Trindade Ao começar a pensar em escrever este texto, algumas frases e imagens se fizeram presentes em minha memória. A mais marcante, inicialmente, foi a do cenário de reunião pedagógica, e a lembrança de vozes de colegas docentes, em diversos momentos: “Eles não têm valores!”. (referindo-se aos estudantes), “Eles não têm hábitos, nem atitudes!”. Parece que, quando a gente pega o fio da memória, uma imagem puxa a outra. Comecei a me lembrar de outras cenas que me marcaram como docente, num movimento pendular entre as positivas e as negativas, entre o ontem e o hoje, num tensionado movimento dicotômico. Lembrei-me: - de um cenário no qual meninas negras se desenhavam louras de olhos claros, verdes ou azuis. - da pesquisa dos psicólogos Kenneth e Mamie Clark1 , de 1947, realizada nos Estados Unidos, com o intuito de investigar como as crianças negras se percebiam. - do recente “documentário”, possivelmente inspirado na pesquisa dos Clark, que circula na internet, sobre crianças que atribuíam qualidades negativas às bonecas negras e positivas às brancas2 . - das meninas e meninos não negros, e às vezes até negros, que se recusam a dar a mão aos/às coleguinhas de pele escura, ou se recusam a formar pares nas danças e festinhas. - do garotinho mestre-sala de uma escola de samba mirim que caiu na passarela, durante uma evolução, mas fez da queda um passo e seguiu glamouroso, sob os aplausos das pessoas que assistiam ao desfile. 1 Ver em: http://www.flickr.com/photos/22067139@N05/2405124754/, acessado em 11/11/2010. All rights reserved by Omega418 2 Pesquisa disponível na internet: http://www.youtube.com/watch?v=DDO3RrxmCeQ, em 11/11/2010. 11 - de uma diretora-adjunta, mulher negra e jovem que, para castigar uma menina que foi enviada à direção porque chamou a professora de nojenta, determinou que ela escrevesse 50 vezes, “devo sempre chamar minha querida professora de linda”. - de um grupo de crianças de idade entre três a quatro anos e, especificamente, de três crianças que faziam parte dele. Uma delas se machucou, chorou, mas não havia nenhum adulto por perto para consolá-la. Imediatamente, duas menininhas foram em seu auxílio, acalentando-a com carinho e palavras: “Não chore! Não chore!”. - uma profusão de situações, de imagens de crianças que nos assombram, como a clássica fotografia de Kevin Carter que mostra uma criança e um abutre à sua espreita3 ; e que nos acalmam, como durante uma eleição para escolha do nome de uma turma de alfabetização, com 17 meninos e nove meninas. Em votação, os nomes Castelinho dos Terrores e Turma do Amor. Vendo meu dilema, e quase desespero, uma criança de seis/sete anos me disse: “Tia4, o Amor sempre vence no final”. Em meio a este turbilhão de imagens, uma sensação me toma: a consciência do imenso amor que me nutre, o amor por todas as crianças, futuro da humanidade, e em especial por aquelas que têm — por motivos perversamente humanos como o racismo, o machismo, a ambição, a ganância, o egoísmo, a insensibilidade — seu direito à infância roubado, sua imagem de criança invisibilizada, a história do seu povo, dos seus ancestrais submergida, negada ou subalternizada. Neste movimento pendular, na linha tênue que separa a vida da morte, a alegria da tristeza, faço minha opção pelos vivos, sem deixar de memorar os mortos. VIDA, VIDA, VIDA... Como promover a Educação pela VIDA e para a VIDA, na qual a exclusão, a subalternização e a desumanização do Outro não sejam possíveis? Fazendo a ligação entre o ouvido, sentido, visto e vivido, entre “eles não têm valores”, a potência de vida de um povo marcado pelo racismo, e a frase da criança, “o amor sempre vence no final”, resolvemos revolver memórias, refazer leituras e “ouviduras” de palavras, de histórias, de 3 Foto disponível na internet: http://pt.wikipedia.org/wiki/Kevin_Carter 4 Sim, embora esta situação tenha ocorrido há mais de 15 anos, as crianças ainda chamam as professoras de tia em muitos lugares deste país. 12 sons e de silêncios, juntar fragmentos e nos reencontrar com as palavras polissêmicas e polifônicas: valores, talvez, fundamentos morais, éticos e comportamentais que nos são significativos e importantes; civilização, talvez, conjunto de produções materiais e imateriais de uma sociedade. No nosso caso, não significa a higienização do humano, nem seu apartamento da natureza, nem uma evolução; afro-brasilidade, talvez, maneiras, possibilidades de matrizes africanas ressignificadas pelo modo de ser dos brasileiros/as. Aproximamo-nos, assim, de imagens d’África de ontem e de hoje, de imagens de suas filhas e seus filhos, de sua descendência, espalhadas pelo planeta Terra; da compreensão de que é impossível negar a riqueza do Patrimônio Africano, afrodiaspórico e afro-brasileiro: ARTE, CIÊNCIA, TECNOLOGIA, FILOSOFIA, PSICOLOGIA, MATEMÁTICA, LINGUAGENS, ESCRITA, ARQUITETURA... O patrimônio africano está visceralmente imbricado no DNA da humanidade. Numa leitura feita do ponto de vista da “casa grande”, querem nos confinar nos tumbeiros, na senzala, no pelourinho ou na cozinha. Aqui, contudo, vale a ressalva de que a cozinha é o coração da casa, o local do preparo, conservação e cuidado do alimento; o problema não está na maravilhosa cozinha, mas em nos aprisionarmos a ela. Tentam nos invisibilizar, subalternizar, subtrair ou hierarquizar nossa condição humana, naturalizando as críticas condições de desigualdades sociais e étnicas. Em vez de nos deixar paralisar pelas concepções que nos despotencializam, redescobrimos os Valores Civilizatórios Afro-brasileiros. Temos valores marcados por uma diversidade, somos descendentes de organizações humanas em processo constante de civilização — digo processo, e não evolução. Como afro-brasileiras e afro-brasileiros ciosas/ os e orgulhosas/os desta condição, em diálogo com valores humanos de várias etnias e grupos sociais, imprimimos valores civilizatórios de matriz africana à nossa brasilidade que é plural. Num processo civilizatório que prioriza o lucro, a dominação e a sujeição do outro, a subtração de sua energia vital (mais-valia), a competição, a racionalidade, a apartação ser humano-natureza, a maquinização e a tecnocracia, é preciso enfatizar outros valores e processos civilizatórios afro-brasileiros, e que também se fazem presentes. 13 Reconhecemos a importância do Axé, da ENERGIA VITAL, da potência de vida presente em cada ser vivo, para que, num movimento de CIRCULARIDADE, esta energia circule, se renove, se mova, se expanda, transcenda e não hierarquize as diferenças reconhecidas na CORPOREIDADE do visível e do invisível. A energia vital é circular e se materializa nos corpos, não só nos humanos, mas nos seres vivos em geral, nos reinos animal, vegetal e mineral. “Na Natureza nada se cria, tudo se transforma”, “Tudo muda o tempo todo no mundo”, “... essa metamorfose ambulante”. Se estamos em constante devir, vir a ser, é fundamental a preservação da MEMÓRIA e o respeito a quem veio antes, a quem sobreviveu. É importante o respeito à ANCESTRALIDADE, também presente no mundo de territórios diversos (TERRITORIALIDADE). Territórios sagrados (RELIGIOSIDADE) porque lugares de memória, memória ancestral, memórias a serem preservadas como relíquias, memórias comuns, coletivas, tecidas e compartilhadas por processos de COOPERAÇÃO e COMUNITARISMO, por ORALIDADES, pela palavra, pelos corpos diversos, singulares e plurais (CORPOREIDADES), pela música (MUSICALIDADE) e, sobretudo, por que não, pelo prazer de viver — LUDICIDADE. Ao redescobrirmos os valores civilizatórios afro-brasileiros, podemos compreender que vivemos embates terríveis, sociais e históricos, determinados pelo racismo; perceber que não estamos condenados a um mundo euro-norte-centrado, a um mundo masculino, branco, burguês, monoteísta, heterossexual, hierarquizado... Outros modos de ser, fazer, brincar e interagir existem. A diversidade e a multiplicidade existem em cada um/a de nós e nos grupos que constituem a humanidade. Estes grupos são fundamentais para a construção de uma nova humanidade, que o trabalho com a EDUCAÇÃO INFANTIL, com os recém-chegados seres humanos de zero 14 a seis anos, demanda, exige. Uma humanidade sem racismo, que preza o respeito, a convivência e o diálogo. Em se tratando de uma educação para o amanhã, tecida no hoje, com o legado do ontem, eu diria, UMA HUMANIDADE DO AMOR. REFERÊNCIAS: colegas docentes (palavras e ações), estudantes (palavras e ações), leituras de mundos, reflexões com ativistas sociais, leituras de palavras (Paulo Freire, bell hooks, Regina Leite Garcia, Petronilha Gonçalves, Muniz Sodré, Amauri Mendes, Maria Batista Lima, Nilma Lino Gomes, Nilda Alves, Ines Barbosa, Marcelo Paixão, Leda Martins, entre outros) Azoilda Loretto da Trindade é educadora, doutora em Comunicação e Cultura e consultora pedagógica do Projeto A Cor da Cultura. 15 16 Energia Vital

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